Some people think football is a matter of life and death. I assure you, it's much more serious than that.
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Dominando um novo mundo, ou como o Pouco Pixel me ensinou a não me preocupar e amar Horizon: Zero Dawn
Desde pequeno, eu sempre gostei muito de videogames. Meu primeiro videogame (sem contar o PC do meu pai que foi invadido por Elifoot 2, claro) foi um PlayStation 1 que minha avó trouxe dos Estados Unidos, e que foi complementado por uma pilha enorme de jogos piratas que meu tio me trouxe de algum lugar obscuro. Passei incontáveis horas jogando Crash Bandicoot, Frogger, Goal Storm 97, FIFA 98, FIFA 2000, 007 (que não é um FIFA, mas parece), e mais uma penca de outros jogos. Eventualmente, muitos anos depois, eu e minha irmã também ganhamos um N64, e esses jogos foram substituídos por muitos Marios, Zeldas, Pokemons Stadium, ISS e por ai vai. Desde que minha vó me deu aquele PS1, uma boa parte do meu tempo livre foi dedicado a jogar videogames.
No entanto, apesar de sempre ter gostado e jogado muito video games, meu interesse se limitava a isso: sentar e jogar. Queria um bom jogo, uma história envolvente, uma ótima jogabilidade, e uma chance de marcar muitos gols - porque minha juventude também foi muito marcada pelo futebol (físico e virtual, mas só no virtual eu era bom o bastante para marcar vários gols). O que me interessava era apenas o resultado; eu nunca me interessei por entender o processo por trás dos videogames, entender como eram feitos e pensados, não só na parte técnica mas em toda a parte conceitual que fazia com que aqueles jogos que eu jogava sequer existissem.
Só que a era da internet trouxe algo interessante. Agora, eu não precisava me interessar e ir atrás desse tipo de conhecimento; pessoas que já foram antes atrás porque gostavam eram capazes de disponibilizar esse conhecimento no formato de um conteúdo facilmente acessível. Eu podia me aprofundar no assunto com o mínimo de trabalho, e isso abriu muitas novas oportunidades para muita gente, em muitos campos.
Foi assim que eu conheci o falecido podcast Pouco Pixel. Feito por um amigo meu, Danilo, junto do seu primo Adriano, o PP falava exatamente do que o título sugere: videogames velhos. Muitas vezes, isso significava inclusive videogames antes da minha época que eu mal conhecia e nunca tive nenhum contato, mas o programa tinha um jeito tão inteligente e interessante de tratar do assunto, e era tão passional sobre o que eles falavam, que era impossível não se envolver pelas discussões e se interessar por video games; não só pelos fatos e histórias que eu não conhecia e comecei a conhecer, mas por todo um jeito diferente de olhar para games que eu - que só me interessava pelo resultado e pronto - nunca teria desenvolvido sozinho. Foi uma adição extremamente interessante na minha vida.
E uma das coisas que mais me chamou a atenção na forma do Pouco Pixel de abordar os jogos era a forma de "classificar" cada um. Não que eles saíssem classificando jogos a torto e a direito, claro, mas sempre que tratavam de um jogo, eles não estavam interessados em qual era a "cobertura" do jogo, mas sim qual era a proposta que ele fazia ao jogador.
Confuso? Deixa eu dar um exemplo que me marcou, então.
Mike Tyson's Punch Out é, oficialmente, um jogo de esportes; mais especificamente, um jogo de boxe. Inclusive, esse foi o único motivo de eu ter ido atrás do jogo: eu adoro esportes, o jogo era de esportes, eu queria jogar um jogo de esportes, e ponto. Mas FIFA, por exemplo, também é um jogo de esportes... e os dois jogos não poderiam ser mais diferentes, com propostas totalmente diferentes. E essa discrepância sempre me incomodou até que o Pouco Pixel me deu a melhor explicação possível para isso: É porque Punch Out não é um jogo de esportes; é um jogo de ritmo.
Por mais estranho que pareça, se você pensar no jogo, faz total sentido. O objetivo de Punch Out não é dominar o esporte boxe, com suas técnicas e mecânicas, diferentes tipos de soco e defesa. É simplesmente acompanhar o adversário, ver o que ele está fazendo, e apertar o botão certo no tempo certo para contra-atacar. Não envolve boxe como esporte; o boxe é apenas um mecanismo, uma cobertura, para implementar esse jogo de ritmo; nesse sentido, pensando na proposta que ele faz ao jogador, MTPO é muito mais próximo de Space Channel 5 - um jogo de repórteres intergaláticos dançando - do que de, digamos, Fight Night 2008... ou até, de certa maneira, Wii Boxing.
Essa maneira de pensar em jogos não pela sua cobertura, mas pela proposta, me fascinou e fascina até hoje. E, entre as muitas propostas de jogos, nenhuma eu acho mais interessante do que quando o jogo te propõe, nas palavras do Pouco Pixel, "dominar uma física"; ou seja, ele cria um conjunto de regras para seu mundo físico, e te propõe uma série de desafios baseados em quão bem você dominou essas regras. E não existe exemplo melhor disso do que os jogos da série Super Mario; nesses jogos, a proposta não é ganhar bolo ou salvar uma princesa, isso é só o enfeite para contar a historinha. A proposta é dominar a física do jogo de correr, pular e se movimentar... o que parece simples, mas é tão completo e abre margem para tanta coisa que até hoje existe uma comunidade GIGANTESCA que se dedica a criar fases novas usando o Mario Maker simplesmente dedicados a levar ao máximo essa dominação da física proposta pelo jogo (e, claro, uma comunidade igualmente gigante dedicada a passar de tais fases).
E onde eu quero chegar com toda essa preleção enorme falando sobre jogos velhos? Em um jogo de 2017, para PlayStation 4, é claro. Um dos meus jogos favoritos dessa geração, e talvez um dos meus favoritos de todos os tempos.
Horizon: Zero Dawn, lançado em 2017 pela Guerrilla Games, é um jogo do estilo que o Pouco Pixel costumava chamar de "Jogo Homem (ou, no caso, Mulher) de Costas"; o jogo de exploração em terceira pessoa que parece dominar a vasta maioria dos grandes lançamentos de videogames na atualidade. E, em tais jogos, é muito raro e difícil encontrar essa proposta de "dominar uma física" simplesmente por que, em grande parte, esses jogos tentam simular uma física próxima da realidade, e o foco costuma ser outro: jogabilidade ou storytelling. Tais jogos, então, acabam optando por uma variação que seria "dominar um mundo", o que faz sentido: muitos desses jogos são de muito aberto, e jogos assim realmente dependem de um forte worldbuilding em torno do qual se fixar. Nesse sentido, construir um mundo legal se torna parte do atrativo que o jogo oferece.
Mas o problema que muitas vezes acontece é que, nesses jogos, esse worldbuilding que você deveria dominar é só um extra; uma expansão daquele mundo para você ir atrás e mergulhar se gostou o jogo, mas não necessariamente algo intrínseco ao jogo e a experiência que ele propõe ao jogador. The Witcher 3, por exemplo, tem um lore gigantesco, e embora toda essa profundidade da história e do mundo seja parte do atrativo do jogo, ele é totalmente irrelevante do ponto de vista da jogabilidade. Redania e Nilfgaard estão em guerra, ambos possuem reis e filosofias totalmente diferentes, e você pode até acabar pegando uma preferência ao longo do jogo por um dos lados, mas quando você vai de espada na mão enfrentar um destacamento de soldados, tanto faz se são de Redania ou Nilfgaard; o que você tem que fazer pra vencer a luta é exatamente igual, os adversários lutam quase que exatamente igual. Do ponto de vista da jogabilidade, toda essa criação de mundo é quase irrelevante; tudo se resume, basicamente, a entender o que o game designer colocou para você e aprender a explorar isso. A parte de "dominar o mundo" se torna totalmente dissociada da jogabilidade.
(Nota importante: isso não é uma crítica a The Witcher 3, um jogo que eu acho muito bom, e gosto muito de explorar seu lore e da profundidade; é só uma constatação de como funciona um jogo do gênero).
No fundo, isso se aplica também a jogos como o já citado (inúmeras vezes) FIFA, que LITERALMENTE tenta simular uma experiência do mundo real, a de jogar futebol. Ainda assim, ficar bom no FIFA não vem de ficar bom ou conhecedor do futebol de verdade: pelo contrário, vem de entender as regras através das quais o game designer transformou o futebol real no futebol. Você não precisa saber como funciona o overlapping, quais as diferentes formas de se defender o meio de campo, etc; você acaba aprendendo como o jogo é feito para funcionar, como o computador tende a se comportar em certas situações, e jogando em função disso - aprendendo jogadas que são mais eficientes dentro daquelas regras e explorando as tendências do computador, não muito diferente (dadas as devidas proporções) do que o enxadrista Gary Kasparov fez para derrotar o supercomputador Deep Blue no famoso duelo homem vs máquina em 1996.
E um dos motivos - talvez o principal motivo - de eu amar tanto Horizon: Zero Dawn é exatamente esse. Tem várias coisas que eu adoro em Horizon, é claro. A jogabilidade é deliciosa (e extremamente fluida para um jogo de mundo aberto), os gráficos são lindos, a história é ótima, a protagonista Aloy é excelente, o lore é rico... todos contribuem, sem dúvida, para um grande jogo. Mas para mim a cereja em cima do sundae é justamente que Horizon é um jogo que conseguiu realmente implementar em um videogame moderno esse conceito de "dominar uma física"... ou pelo menos tanto quanto é possível na era do Homem de Costas, o que eu chamei de "Dominar um mundo".
Sem entrar em spoilers, mas falando um pouco do jogo, o mundo de Horizon é bastante interessante do ponto de vista de worldbuilding: um mundo onde tribos humanas primitivas coexistem com avançadas máquinas que se assemelham a animais, mas obviamente muito mais fortes, resistentes e mecânicas. Os habitantes desse mundo, naturalmente, incorporaram essa convivência no seu modo de vida, caçando essas máquinas por seus valiosos componentes e estabelecendo assim, de certa forma um novo ciclo da vida. A jornada de Aloy, naturalmente, envolve muitas vezes confrontar essas máquinas em diversas situações, e derrotá-las pelos mais diversos motivos. E é ai que entra a genialidade do jogo.
Até certo ponto, é possível avançar no jogo apenas pela força bruta e dominando as mecânicas de luta, especialmente nos níveis mais fáceis do jogo; usar a esquiva, usar os ataques de lança da Aloy, encher o adversários de fechas e bombas, etc. Mas quanto mais você avança - e principalmente quando joga nos níveis mais difíceis de Horizon (motivo pelo qual eu acho que a melhor experiência possível do jogo É nos níveis mais difíceis, mesmo que você apanhe no processo de aprendizado) - se torna impossível se limitar a dominar a jogabilidade em si e avançar na força bruta. E é nesse ponto que o jogo te obriga a realmente dominar aquele mundo, aquele worldbuilding; ele deixa de ser apenas um complemento, e passa a ser parte fundamental da sua experiência de jogo porque se você não dominá-lo, você simplesmente não consegue avançar no jogo.
Em Horizon, cada máquina tem uma função específica no mundo do jogo. E, dependendo de quais forem suas funções e características, cada máquina vai ser composta de diferentes partes e componentes, motores e geradores, combustíveis e armas; e como o jogo foca em ter menos variedade de inimigos para caprichar na construção de cada um deles (a maior máquina do jogo, o Thunderjaw, tem 55.000 componentes diferentes com os quais é possível interagir de um jeito ou de outro durante uma luta, por exemplo), esses componentes se tornam parte fundamental da jogabilidade. Cada um deles, dependendo de todos esses fatores (qual a máquina, qual sua função, qual "família" ela pertence, etc), vai ter dentro de si um pequeno universo: alguns vão ser mais vulneráveis a certos tipos de ataques e situações do que outros, certos componentes reagem de formas diferentes a ataques diferentes e provocam resultados diferentes, e quando você começa a montar inimigos com todas essas diferentes partes e propósitos você abre um MUNDO de possibilidades para como lutar. Isso é ainda mais verdade nos modos mais avançados de dificuldade porque neles o preço de novos itens e armas é extremamente caro, limitando demais o quanto você pode avançar nisso ao longo do jogo, e portanto te obrigando a ser extremamente estratégico e racional em como você vai construir suas próprias táticas de batalhas.
Ao mesmo tempo, Horizon não te permite apenas decorar uma forma de vencer cada adversário e sentar no conforto dela. Claro, haverá situações onde as batalhas partirão do seu controle, onde você pode escolher o terreno, preparar armadilhas e ditar o tom da luta. Mas em muitas outras você será obrigado a enfrentar os inimigos sem preparo, ou em alguma desvantagem, e você não vai poder usar dos mesmos recursos que usava quando estava stalkeando alguma máquina solitária pela selva; e, como quase todas as máquinas do jogo (especialmente do late game) são muito mais fortes que você em termos de força bruta e combate corpo a corpo, isso só te força ainda mais a explorar essas fraquezas que são as peças que compõem cada uma das máquinas. E, quanto melhor você dominar as funções e características e combinações de cada uma, maiores serão seus recursos para sobreviver e superar determinadas situações.
Você sabe, por exemplo, que a peça que forma o "papo" de um Longleg é vulnerável a danos do tipo "tear", e que se destruí-la dessa maneira vai iniciar uma grande explosão de gelo ao seu redor. Se você está enfrentando esse Longleg em meio a, digamos, vários Glinthawks, isso é ótimo: Glinthawks são vulneráveis a gelo, então causando tal explosão você está não só destruindo o Longleg como criando uma situação a seu favor em relação ao resto dos inimigos. Mas se esse Longleg estiver cercado de Snapmaws, ai você tem um problema; Snapmaws se não muito bem com gelo e possuem eles mesmos ataques desse elemento. Então não só destruir o papo do Longleg não vai te ajudar a derrotar os Snapmaws, como na verdade você vai estar aumentando o poder de fogo (sem trocadilho) do restante dos seus inimigos. Não só essa situação tirou de você uma arma que pode ser usada a seu favor com essa explosão, como na verdade agora é melhor que você derrote o Longleg SEM usar seu ponto fraco para não fortalecer. Se lascou. Se você não souber o que está fazendo, vai ficar MUITO difícil pra você superar essa situação.
Então realmente é isso de que Horizon se trata: de dominar, realmente, um mundo. Ele não está lá apenas como um complemento, para contar uma história que é um dos atrativos do jogo (embora também faça isso e eu ache maravilhosa), mas ele trás esse worldbuilding diretamente para dentro da jogabilidade e para dentro do jogador. É parte da PROPOSTA que o jogo oferece ao jogador que ele não apenas habite esse jogo e use ele como pano de fundo para suas aventuras, mas que entenda suas interações, sua construção, e use isso a seu favor para tentar superar o que a princípio parecem ser situações impossíveis de homem contra máquina(s). Dentro desse estilo "Homem de Costas" que domina os videogames atuais, Horizon: Zero Dawn foi o jogo que eu vi chegar mais perto desse conceito de "dominar uma física", ou "dominar um mundo". E como essa situação - começar do zero, ir aprendendo o básico de como ele funciona, aprofundando cada vez mais - é EXATAMENTE a situação da protagonista Aloy, que está vendo e aprendendo muito daquilo pela primeira vez, isso contribui de forma incrível para a imersão que o jogo cria, e a sua evolução passa a ser a mesma da personagem que você controla.
Olhando em retrospecto, não foi à toa que Horizon conquistou um lugar especial no meu Panteão dos jogos de videogame favoritos. E não só pelas coisas óbvias como história, jogabilidade, visuais e personagens, porque isso outros jogos também trazem da sua própria maneira. Mas porque Horizon, além disso tudo, me ofereceu algo mais: me ofereceu a chance de expandir essa experiência além do apenas "apertar botões", e a chance de fazer parte daquele mundo tão legal que o jogo me apresentou.
E eu duvido que teria sido capaz de apreciar tanto esse aspecto de Horizon: Zero Dawn, e suas implicações, e elevar tanto o nível da minha experiência com o game, se não fosse a forma de pensar jogos que o Pouco Pixel me ensinou ao longo de alguns anos com tanto bom humor, paixão e dedicação... o que é uma fantástica ironia, porque esse é um jogo que o Danilo (metade do Pouco Pixel) realmente odeia, e isso só me deu ainda mais vontade de escrever esse texto explicando porque ele é parte de eu gostar tanto desse jogo quanto eu gosto.
E também, é claro, para agradecer um pouco a esse projeto tão legal, que infelizmente acabou cedo, mas sem dúvida deixou um legado em quem ouvia. E um que, assim como Horizon: Zero Dawn, eu vou levar pra vida com muito carinho.
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